segunda-feira, 29 de julho de 2013

A Prece [parte1]


            Libação, sacrifício, dádivas de primícias, é esta a essência da atividade devota. Contudo, a cada um destes atos corresponde a palavra correta. Toda a palavra injusta, má, grosseira ou de lamento seria “prejuízo”, blasphemia, por isso a “boa palavra”, a eufemía, dos participantes consiste primeiramente no “silêncio sagrado”. Dele parte a palavra dirigida a algo à sua frente, a exortação, o pedido: a prece. Não existe quase nenhum ritual sem preces, mas também não há nenhuma prece importante sem ritual: litaíthysíai, “pedir –sacrifício”, é uma ligação antiga e sólida. Na Odisseia, quando Penélope ora a Atena, ela lava-se, veste-se de lavado e prepara os grãos de cevada no cesto sacrificial.  Em regra é oferecido vinho, ou grãos de incenso são colocados nas chamas. Em ocasiões importantes  é organizado um sacrifício completo, é organizado até a respectiva procissão até junto do deus no seu santuário, a qual é denominada caminhada das súplicas, hikesía[i].
            A palavra habitual para “orar”, eúchestai, significa simultaneamente “vangloriar-se”, e na vitória “dar o grito de triunfo”: tal prece é mais é mais um tornar-se notado do que entregar-se. “Alto” e “para todos” ora aquele que é líder do sacrifício, aquele que consuma a libação: o rei, o comandante, o sacerdote. A maior parte das vezes a prece inclui em si o voto – que designa igualmente euché.  Assim, ele é executado oficialmente e perante testemunhas. Obviamente, os deuses também conseguem ouvir pedidos pronunciados em voz baixa e, em casos excepcionais, no culto de divindades sinistras, subterrâneas, é prescrita a prece silenciosa.
            Ará significa prece e voto, mas simultaneamente também maldição. O sucesso e a honra de alguém estão a maior parte das vezes inextricavelmente ligados à humilhação e a destruição de um outro. Assim, a “ará boa” e a “ará má” andam sempre associadas. Ará tem um soar antigo, e a isso associa-se o fato de a palavra prece exercer poder diretamente, ser bênção ou maldição que, uma vez pronunciada, não pode ser mais retirada. O título de sacerdote que sabe manipular tais palavras de prece é na Ilíada o de “aretér”. É Crises que com sua prece traz a peste ao exército dos aqueus e posteriormente a faz cessar. Na descrição poética, esta prece é um pedido bem formulado ao deus pessoa Apolo que “ouve” o seu sacerdote.
            Uma camada mais elementar da exortação são fórmulas linguísticas tradicionais, sem sentido do ponto de vista da língua, que pertencem a determinadas procissões ou danças, que são associadas cada um a um determinado deus. Elas determinam pela sua sonoridade e ritmo a vivência festiva e dela recebem simultaneamente o seu conteúdo. O ato de sacrifício é marcado pelo grito estridente, o ololygé das mulheres. O mesmo grito feminino acompanha o nascimento quando é esperada a vinda e a intervenção de uma deusa do nascimento, mas também outras situações de crise, como presumíveis estados possessos. As celebrações dionisíacas são reconhecíveis pelos seus gritos selvagens: principalmente euhoí – transcrito para latim por evoé - mas também trhíambe, dithýrambe. O Peán está associado ao culto de Apolo, mais precisamente ao chamamento ieie paján com ritmo especial: três curtos e um longo. Assim é denominada a canção que afasta a pestilência e festeja o triunfo, mas também o próprio deus que se manifesta do mesmo modo. Iakch o Iakche é o grito que acompanha a procissão Elêusis. Também neste caso se ouve mais tarde o nome derivado dos gritos, “Iacos!”, que encabeça a romaria na qualidade de “daimon”, sendo por ventura idêntica a Dioniso. Mais tarde era transportado também na forma de estátua. “Ditirambo” também foi erguido como cognome de Dioniso. O grito coletivo conduz à beira êxtase. Logo que os gregos se deram conta dessas características da palavra começaram a falar de deuses pessoais, deuses representados de modo antropomórfico.
            Salta à vista, e está relacionado com esse antropomorfismo, fato e a tradição grega não ter deixada quaisquer fórmulas litúrgicas de prece, nenhum veda, nenhum hino arval. Expressões indo-europeias foram conservadas na linguagem poética, mas precisamente por isso são de livre utilização. Uma forma fundamental da prece, ainda que variável em cada caso particular resulta da sua função. No início encontra-se, apoiado pela exortação “Ouve!”, o nome da divindade. Trata-se neste caso de encontrar o nome correto, principalmente o epíteto apropriado. De preferência os espíritos acumulados – isto também segundo a tradição indo-europeia – ou é dado a escolher: “seja qual for o nome que te agrada”.  Procura-se também definir a esfera do deus, nomeiam-se os seus locais preferidos de permanência ou várias possibilidades de locais donde ele possa vir. Segue-se uma justificação do chamamento do deus por referências a anteriores demonstrações de amizade para com ele ou que dele tenham partido, como se de um precedente se tratasse: “Se jamais”, “tão verdade como antes” o deus ajudou o homem ou este levou a cabo obras do agrado do deus, fez sacrifícios e construiu templos, tal deve ser agora comprovado. O asseveramento “tu podes fazê-lo” é acrescentado de bom grado. Depois, quando o contato foi estabelecido, segue-se sucinto e distinto o pedido e a maior parte das vezes também a promessa pra o futuro, o voto. A piedade deverá garantir a continuidade. O ferimento do sentimento religioso durante a época da crise sentiu a frontalidade interesseira desta eukhaí como indecente. Aconselhava-se então a pedir apenas “o bem” e a deixar o deus a escolha. Tal piedade sublimada nunca pôde tornar-se regra geral: normalmente os gregos não se inibiam de orar pela destruição de outrem.
            Não existe qualquer ajoelhar durante a prece. O gesto de súplica é o estender dos braços. Assim, para clamar aos deuses celestes, elevam-se ambos os braços em direção ao céu com as palmas das mãos voltadas para cima. Para exortar os deuses do mar estendem-se os braços em direção ao mar. Estendem-se os braços também em direção à imagem de culto. A uma imagem de culto ou santuário é devida, mesmo quando se passa ao lado sem qualquer propósito específico, uma saudação, um khaire, como se de um conhecido se tratasse, ou o gesto de beijar levando-se as mãos os lábios. Pode-se sempre acrescentar uma prece breve e simples. Sócrates saúda deste modo o sol que nasce. Formas rudimentares da exortação aos deuses acompanham o cotidiano. Principalmente em situações de excitação, angústia, admiração, ira, os “deuses” são solicitados em geral ou é evocado o nome de um deus apropriado. Frequentemente, trata-se de divindades locais que estão debaixo da língua, – de resto, sobretudo “Zeus” e “Apolo”, que muito particularmente “Héracles”, que repele tudo que é mau. Héracles [N.E. – “Heracleis” na versão portuguesa] – em latim mehercule - é quase tão utilizado como a expressão “Jesus!”. As mulheres têm as suas deusas particulares: Ártemis, Pandrosos e outras semelhantes.
            Esforços suplementares são requeridos quando se pretende alcançar os mortos sou deuses do mundo subterrâneos. Os poetas descrevem como as pessoas se atiravam par ao chão, suplicando e batendo com os punhos no solo. O mais tardar a partir do século V, para estas exortações destinadas a maldizer e prejudicar aparece a sua fixação na escrita, mais silenciosa e duradoura: sobre folhas de chumbo – que serviam também para escrever cartas -, o adversário é entregue aos deuses do mundo subterrâneo, sendo elas enterradas no santuário desses deuses ou num sepulcro. Enquanto o culto propriamente dito se processa sempre na esfera da oralidade, o progresso serve à magia. No lugar da exortação, aparece então também a atividade mágica: “eu aqui inscrevo”, “eu assim vinculo”. Por isso, isso se denomina katádesis, defixio.

Extraído de
BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Arcaica e Clássica. Tradução de  M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p.159-163.

Nota do editor:
O texto foi editado para adequar-se aos padrões mínimos do português brasileiro. As notas ao longo do texto foram suprimidas.





[i] Uma festa sacrificial em Delfos, “com a súplica (hiketeîai) de todo o povo da ditosa Grécia”: Philodamus – Hinos 112-4, Powell p.168 – inscrição “hikesiá de Pêisis”  numa ovelha votiva da Acrópole: Inscriptiones Grwecae I, p. 434. 

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