segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Hellenismo, Wicca e Reconstrucionismo

Nos últimos meses uma série de incidentes e discussões na grupo online do RHB (Reconstrucionismo Helênico no Brasil) me fez repensar o quão o Helenismo é uma noção aberta, como já disse em um dos últimos textos aqui no blog. De modo geral, quase qualquer pessoa hoje em dia que estabelece alguma relação com os deuses da Grécia (e vejam que falo deuses da Grécia e não religião helênica) pode tomar para si o adjetivo 'heleno' ou 'helena'. Até aqui tudo bem, afinal de contas, o Helenismo não é um patrimônio de um grupo particular, mas um conjunto de práticas, crenças e valores dos quais qualquer pessoa pode apropriar-se, seja com finalidade religiosa e devocional ou não.

Vamos ilustrar algumas das situações que percebo e nomeio como incidente: uma pessoa chama para si o título de Sacerdote de Poseidon; outra pede ajuda na sua relação pessoal com Thanatos, e mais outra aproveita a deixa para pedir que ajudem a encontrar epítetos relacionados a certas faces de Hades que ele cultua; em um terceiro episódio, durante um debate sobre um livro em especial e as possibilidades dele ser usado em uma abordagem reconstrucionista, de modo um tanto confuso uma moça comenta sobre as razões pelas quais Hécate é representada sempre com uma face sombria, trevosa, ignorando assim outros aspectos que ela assumiria nas condições de donzela, por exemplo. 

Essas situações podem passar desapercebidas e de fato são bem pequenas quando comparadas a questões mais problemáticas, a exemplo das diferenças entre helenos e gregos na Grécia, ou do estatuo público da religião, enfim. Todavia, pra mim elas sinalizam, dentro do contexto brasileiro em especial, para o modo como as religiões estão em contato constante (e isso é ótimo, não vamos perder isso!), mas ao mesmo tempo o quanto de ignorância se alimenta quando se está na casa de um anfitrião e não se respeita as regras de hospitalidade estabelecida por esse anfitrião, isso para usar uma imagem mais próxima do Hellenismos. 

Então, vamos lá. Helenismo e Hellenismos não são a mesma coisa. Helenismo de modo geral é o termo que caracteriza a experiência religiosa vinculada aos povos da Grécia e sues deuses, heróis e daemons; Hellenismos é a forma reconstrucionista de exercer essa religião nos dias de hoje.  Como também já disse, o reconstrucionismo de modo amplo e em suas variadas vertentes é originário de um desconforto por parte de alguns sujeitos - em especial na Europa e nos Estados Unidos - com a falta de profundidade das religiões da Nova Era, e em especial da Wicca, no que tangia à forma como as pessoas se apropriavam de religiões pré-cristãs. 

Ainda que essa justificativa possa ser considera, ela sem dúvida deve ser repensada hoje em dia. Não me parece adequado avaliar uma religião com base nos preceitos de outra, de modo que não podemos avaliar com inadequada ou equivocada a forma como wiccanos em sua diversidade cultuam a uma deusa que tem suas origens na Grécia, por exemplo, Isso porque desde a antiguidade os deuses não são propriedades de um povo, mas eram potências vivas, seres atuantes e que se dispersavam por todo o mundo. A história de Dioniso e Apolo são bastante singulares nesse sentido; e é só através desse passo inicial que podemos considerar a possibilidade de, como brasileiros, aderirmos a uma experiência religiosa que a priori não teria qualquer vínculo com a história do país. 

Contudo, distinções são necessárias, pois são elas que organizam e dão forma aos modos como as pessoas de grupos diferentes significam e expressam sua relação com o sagrado. Sendo assim, retomo aqui algumas das diferenças entre a Wicca e o Hellenismos como forma de pensar o que distingue uma forma reconstrucionista e uma forma wiccana (e aqui me atrevo a por junto tanto tradicionalistas quanto ecléticos) de pensar esse estado no mundo com os imortais. 

1. A Wicca define um deus (masculino) para o sol e uma deusa (feminina) para a Lua. Os Helênicos são menos definitivos quanto ao gênero dos deuses. Há deuses machos e fêmeas para o sol, a lua, e todas as outras coisas.

2. A Wicca é (originalmente) duoteísta. Os Helênicos são politeístas e animistas. A Wicca é duoteísta porque coloca todas as deusas com a cara da Deusa-Mãe-Criadora e todos os deuses com a cara do Deus-Pai-Noivo/Cornífero. Já os Helênicos tem um panteão extenso, que não é tão simples assim. Os deuses helênicos são nossos deuses, os deuses vindos dos gregos. A Wicca os empresta quando o quer, mas não tem um deus identificado como exclusivamente wiccano. (O que eu quero dizer é que a nossa Mãe não é a mesma Mãe wiccana.)

3. A moralidade wiccana é baseada em "não prejudique ninguém", como a filosofia cristã e hindu de não ferir os outros. A moralidade helênica (assim como a nórdica) é baseada primeiro no heroísmo e na honra pessoal. Como foi dito por Diógenes Laércio "Os Deuses devem ser tratados com reverência, nenhum mal deve ser feito, e a honra deve ser preservada". Ou como os celtas costumam dizer: "Verdade em nosso corações, Força em nossos braços, e Realização em nossas línguas", esta última querendo dizer que as palavras de alguém devem refletir seus sentimentos e atitudes, e serem defendidas para manter a honra da pessoa. 

4. A Wicca tem um conceito limitado dos "Outros Mundos". Os Helênicos acreditam que a interatividade entre esses "Outros Mundos" e o nosso é, muitas vezes, a base central de nossa prática.

5. A Wicca é uma religião invocativa e que leva ao êxtase. Os Helênicos acham que esse é um aspecto secundário da cerimônia. 

6. A Wicca cria espaços sagrados, que chamam de "abrir o círculo". Os Helênicos vêem os espaços sagrados como algo 'onipresente', ou seja, que está em todos os lugares (mesmo que ele possa ser reconhecido e delimitado para intenções devocionárias ou para uma cerimônia).

7. A Wicca é uma religião iniciática. Os Helênicos têm elementos iniciáticos (os rituais de passagem, que estão conosco no curso de nossas vidas, sendo uma parte da vida, celebrando a vida). Isso se dá porque ainda que houvessem ritos de mistérios que incluíssem um elemento iniciático, a base do Hellenismos é a religião civil e pública e sua interface com o mundo doméstico.


8. A Wicca usa os elementos clássicos, mostrados pela cultura greco-romana (terra, fogo, água, ar, e talvez o Éter ou Akasha). Os Helênicos não têm nada tão material assim. Nós temos o céu (Urano), a terra (Géia), a noite (Nyx), o caos (Khaos), ... etc.

9. Alguns wiccanos dançam nus no ritual, já no helenismo era proibida a nudez no templo ou outros locais sagrados. Apesar de alguns festivais terem nudez, ela acontecia em um local apropriado para isso, e com um propósito, normalmente a fim de re-encenar algum mito que assim o solicitava em honra de sua origem. Outra coisa quanto a vestimentas: os romanos, por exemplo, usavam capuz no templo, os gregos não. E os wiccanos fazem como querem.

10. A Wicca não dá ênfase à mitologia (adota-se a possibilidade de uma reunião  devocional - com elementos celtas, nórdicos, helênicos, romanos, hindus, egípcios, xamânicos, etc). Na tradição helênica, a mitologia é central e para toda a vida; ela faz parte da prática, dos rituais e dos ensinamentos. A visão helênica dos deuses não é como ela é hoje. Um helênico não adora os deuses no mesmo sentido que a cultura judaico-cristã o faz, ou seja, com subserviência. Os Deuses não estão "acima" de nós, estão perto de nós, vivendo lado a lado, como amigos, parentes, ancestrais, companheiros de batalha, companheiros de festas, para o melhor e para o pior. Um helênico não coloca a si mesmo à mercê dos Deuses. Ele encara os Deuses com honra, sendo digno da atenção e favores dos Deuses, como um filho diante de pais que se orgulham dele. Isso sempre foi assim e sempre vai ser. Quando um helênico conversa com os Deuses, ele o faz voltado para o leste ou para o mar, e não prostado em submissão.
(Retirado da página do Helenos, os trechos em itálico são inserções ou edições que julguei adequadas introduzir)

Quando há mais de dez anos eu comecei a me aproximar e reconhecer a minha prática helênica como mais apropriadamente reconstrucionista, esse foi um dos primeiros textos que li. A lista bastante simples parecida fazer muito sentido pra mim, e por vezes, em momentos onde o fluxo de informações e experiências se faz tão intenso que é preciso averiguar os limites e potenciais das experiências pessoas e das interpretações que atribuímos a elas, sempre retorno a ele. Não se trata, mais uma vez, de produzir caixas para separar; as religiões tendem a aproximar-se e o reconstrucionismo não é de modo algum uma tentativa de congelar esse processo. Todavia, como qualquer outra religião ou abordagem sobre a religião, ele também tem suas especificidades e essas devem ser levadas em consideração.

Minha intenção em um arremete final é dizer que, ainda que possamos falar em uma Wicca que se foque numa abordagem helênica, ela não é reconstrucionista. Reconstrucionista não é sinônimo pra quem estuda a religião, mas para quem vivencia a religião dos deuses da Grécia de uma maneira específica, que nesse caso se distingue de outras. A distinção não implica um juízo de valor em termos de melhor ou pior, é tão somente uma diferença - que bom! 

Eirene Theoi! 

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