domingo, 24 de maio de 2009

As coisas não são bem assim


Isso mesmo, as coisas não são bem assim. Ao pensarmos no sagrado feminino o usual é aquela instrução costumeiramente wicanna ou qualquer dessas correntes do paganismo contemporâneo que diz-se portador de uma tradição anterior, ao menos é isso que defendem. Mas as coisas não são bem assim. O comum é imaginar as deusas como mulheres ou maternais, ou moças ou senhoras idosas e sábias. De fato, elas podem ser assim. É inegável o amor e zelo de Hera pelo Seu consorte, a doçura de Deméter para com sua filha Koré-Perséphone, ou a beleza de Ártemis a correr pelas campinas e montanhas. Mas o mundo das deusas e dos deuses é todo um complexo, que deve ser entendido, assim como bem aponta o helenista karl Kerényi sem preconceitos. “O autor entende que, se o desejo do estudioso é alcançar os caracteres fundamentais dos mitos, ele deve se desligar dos seus próprios preconceitos o mais que puder. Isso porque, antes, não haverá senão uma correspondência superficial entre o mundo do estudioso e o dos mitos. Ele passará meramente ao status de uma curiosidade, ou seu conteúdo será interpretado de forma degenerada, face seu significado inicial.”
A cultura pop simplificou a imagem dos deuses, já anteriormente fragmentada pelo pseudo-intelectualismo dos escritores da Idade Média e das perseguições contra os povos pagãos. Enfrentar esse universo onde a imagem dos deuses é deturpada ou simplificada é o primeiro desafio àquele que tenta estar próximo do complexo sui generis que é a divindade.
Há uma quarta, quinta, sexta face do divino feminino que muitas vezes é ignorado. E ao se deparar com ele, surge muito naturalmente um desconforto ou estranhamente, típico de quem enxerga os deuses como entidades belas, amplamente benéficas, perfeitas e acolhedoras. E de fato, Eles e Elas são sim, mas as coisas assumem uma dimensão muito maior que essa proposta. Os deuses são bondosos, mas acima de tudo, justos. E, semelhantes a nós, têm suas paixões, vícios, escolhas e tristezas.
Confesso que a primeira vez que me deparei com a imagem de Atena me assustei. Uma deusa de olhos belos, pele rosada e cabelos negros como o ébano, e que logo ao nascer solta um grito de guerra que ecoa por todas as partes do mundo, logo em seguida vestindo-se, toda armada, reluz e fulgura frente a seus tios, pai e irmãos, estarrecidos, frente ao poder daquela deusa, toda virgem e casta... uma deusa Guerreira! Não era a donzela, não era Mãe, tampouco anciã. Era a guerreira, armada com a lança e com a égide. Isso me encanta.
A violência e a competição são forças latentes e indissociáveis para quem deseja compreender o mundo religioso e social grego. Pode parecer egocêntrico, ou exibicionismo, mas o grego sempre se empenha a fim de ser o melhor. Quando falamos em “grego/heleno” sempre estamos nos referindo àquele que opta por partilhar de uma educação moldada por normas éticas e morais baseadas no respeito, na ordem, na tradição e no bem geral da comunidade, bem como de si mesmo.
Mais uma vez vou recorrer à moral judaico-cristã como uma das maiores barreiras para a compreensão do pensamento grego e primitivo (em termos históricos, não “evolucionários”). A moral judaico-cristã moldou o pensamento humano a conceber um sistema de mundo em que os mais frágeis são sempre os mais fortes, os bem aventurados são os retalhados, os pobres e os excluídos. A moral grega vai contra isso. A moral grega funda-se sobre a honra do adepto. O homem oferta o melhor de si, empenha-se em ser o melhor naquilo que efetua, pois assim está contribuindo para o crescimento de seu grupo e também honrando os deuses a quem é devotado. O grego sempre quer ser o melhor.
Penso seriamente que o mundo grego precisa ser visto com olhos despidos de idéias pré-concebidas e de pensamentos formados. Um autor sempre defende uma linha de pensamento, e como tal, é suscetível como todo mortal a “puxar a sardinha” para o seu lado, então, como no contexto do politeísmo helênico, as fontes históricas são as ferramentas mais costumeiras, é sempre bom advertir que nem toda leitura é recomendável, e mesmo aos recomendáveis, cabe por observações, e verificar as fontes de que se servem.
Não se pode conceber um deus como uma simples coisa, a exemplo do que se aprende na escola como “ Afrodite é a deusa do amor, Ares o deus da Guerra, Zeus deus do trovão, Hera do casamento”... tratar as coisas desse modo é desrespeitoso para com um deus. Talvez seja como etiqueta-lo, e sabemos que no real as coisas não são tão claras assim. E um deus é uma realidade concreta, não um arquétipo ou uma entidade imaginária e/ou mágica. Eles também são entidades com poderes destrutivos. São tão complexos quanto qualquer um de nós... mas mesmo assim, ainda são deuses.

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