quinta-feira, 28 de maio de 2009

Os deuses não são personificações

- Eles nos abrem os olhos para o essencial e o verdadeiro-

- Walter Friedrich Otto *

Há um grande número de divindades como Diké e Têmis, “Direito” e “Lei”, Eirene, ou seja, “Paz”, Plutos (Pluton), “Riqueza”, etc. Divinas figuras como estas, dentre tantas outras como Aidos e as Cárites, são chamadas de “personificações”, porque seus nomes se acham no idioma como conceitos abstratos. Todavia, muitas vezes é possível demonstrar que o nome do deus foi o que precedeu e o conceito abstrato derivou dele. Desde muito se firmou o costume de falar “personificação” como sendo um processo muito natural, quando ente de natureza impessoal – um ente abstrato- pode elevar-se ao pessoal. Basta colocar a questão para responder imediatamente que isso é impossível. Ainda hoje, a linguagem poética tem abundância dessas figuras. Quando Hölderlin se dirige à “Paz”, como uma deusa e a venera, terá por acaso personificado um conceito abstrato? Até hoje erigimos à Justiça e à Liberdade estátuas de aparência divina. E se, no famoso ato popular “Cada Qual”, a Fé é apresentada como uma figura celeste, será uma personificação o que tanto comove os espectadores?
Na verdade não há personificação e sim, apenas, despersonificação – assim como inexiste mitificação, mas tão somente desmitificação, e tampouco faz sentido, segundo a tão famosa sentença de Schelling, indagar como o homem teria chegado a Deus quando antes só cabe indagar como é que d’Ele pôde afastar-se.
A figura mítica é o fenômeno originário. Só porque eram originalmente personagens divinas, míticas, as noções de “Vitória”, “Paz”, “Liberdade”, “Justiça”, “Amor” etc. puderam ressurgir qual seres sobre humanos na poesia e na arte de todos os tempos.
Assim é que a própria língua, junto com as artes plásticas, nos confirma a veracidade desse aforismo atribuído a Tales: “Tudo está cheio de deuses”.
Este saber de uma pletora de deuses que não apenas vive no universo, antes é o universo, nada tem a ver com o panteísmo. Seria o caso de dizer “ tudo que é substancial e verdadeiro manifesta uma forma divina”. Porém mais certo seria o contrário: “são as formas divinas que tornam manifestos tudo quanto há de essencial e verdadeiro”. Já aqui pode-se notar que se os gregos puderam descortinar tão profundamente os mil tesouros do Ser foi por lhes ter as formas divinas aberto os olhos.
Em todas as formas divinas do gênero daquelas de que demos exemplos acima repete-se o divino milagre da síntese unificadora do subjetivo e do objetivo. E todas elas, por limitadas que pareçam enquanto nos apegamos ao significado conceitual de seus nomes, quanto mais longe miramos tanto mais ampliam seu domínio, até abranger todo o mundo, toda a existência.
Acima delas, porém, reúnem-se augustas figuras divinas; estas não retiram às primeiras seu significado próprio, antes abarcam em seu ser mais vasto.
Também elas são , em certo sentido,representantes de um determinado círculo do mundo e da existência; mais o que tornam manifesto com seu ser é tão grande, tão poderoso, tão variado, a tal ponto preenche todas as lonjuras e todas as profundezas do real que por si só cada uma delas parece ser todo o divino.
Com sua divina grandeza elas se acham presentes em todos os círculos do ser - no cósmico, no elementar, no vegetal e no animal- , convertendo-os em reflexos do seu próprio ser, para revelar-se finalmente na forma humana. Assim, cada uma dessas divindades, sem prejuízo de suas figuras mais excelsa não só pode ter ao pé de si o animal ou vegetal, como pode aparecer e ser venerada como animal ou vegetal. Que o racionalista chame isso de fetichismo; o sábio compreenderá que não se rebaixa a divindade, antes transparece através dos seres seu fundamento infinito de modo tal que neles impõe sua sacra veneração.
Esses grandes deuses já por seus nomes tornam claro que seu culto é mais antigo que a cultura grega propriamente dita. Isso se aplica também a Zeus, deus do céu e do universo, cujo nome é grego. Conforme atestam os povos da Índia, da Itália e da Germânia, a adoração dele já estava presente na proto-história indo-européia, e os gregos a trouxeram consigo ao imigrar do norte para o país cujas populações primitivas se misturaram.
Conquanto na maioria dos casos não saibamos muita coisa a respeito dos representações ligadas a essas figuras antes de elas se converterem em deuses gregos, o pouco que temos conhecimento, já nos serve para, em confronto com as idéias religiosas do Próximo Oriente, distinguir o pensamento religioso autenticamente grego do das formas de culto de outros povos.
Afrodite, Apolo e Ártemis, Hermes e os demais deuses, qualquer que tenha sido a forma como se apresentaram a seus adoradores na época pré-helênica, manifestaram-se em um nova revelação, tal qual as viu Homero, que delas nos dá o testemunho mais antigo, válido para todos os tempos. Essas aparições dos divinos é uma das iluminações mais destacadas do espírito grego. Não tem sentido querer explicar a fé nos deuses com base nas condições de existência e na atitude espiritual da Grécia primitiva. O que chamamos de atitude espiritual e modo de vida dos gregos nada mais é que auto-revelação de deuses como Zeus, Atena e Apolo. Eles é que fizeram a Hélade ser o que foi. Todas as suas obras e descobertas admiráveis são, em última instância, irradiações da revelação feita aos gregos, e só a eles.

Otto, Walter Friedrich. TEOFANIA: O Espírito da Religião dos Gregos Antigos;
Tradução de Ordep Trindade Serra. São Paulo, Odysseus Editora, 2006

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