sábado, 11 de fevereiro de 2012

Reconstrucionismo como diáspora: novos olhares para o multiculturalismo

O que pretendo fazer aqui é um esforço analítico que em certa medida me amedronta e simultaneamente me encoraja. Partindo das discussões sobre as teorias subalternas, mas notoriamente os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer, gostaria de propor uma leitura sobre o fenômeno no reconstrucionismo que na verdade tem se convertido na interpretação que mais recentemente tenho dado ao fenômeno. O empreendimento teórico não é tão somente uma forma de legitimar o fenômeno – mesmo que não deixe de sê-lo –  mas é também uma forma de elaborar a percepção pessoal que tenho sobre o movimento costurando à malha das experiências uma percepção teórico-metodológica que ele tanto exige; nessa perspectiva esclareço também que as interpretações são tomadas essencialmente do lugar que tenho ocupado como um de seus representantes, mas também como um observador-participante (ou seria participação observadora?).
Teorias Subalternas
As teorias subalternas tem sua origem nos Estudos Culturais. Surgidos na Inglaterra da década de 1950, os Estudos Culturais emergem a partir das intensas mudanças sociais ocorridas no pós-guerra, abrindo espaço dentro da academia para os estudos da cultura popular não erudita. Neste movimento classificações e proposições hierárquicas que valorizavam o erudito em detrimento do popular foram questionados e abriu-se um espaço para estudo da experiência de grupos que historicamente foram vistos como inferiorizados ou subalternos.  A fertilidade aberta pela inovação propiciou o surgimento de subdivisões dentro dos Estudos Culturais, entre os quais podemos citar os Queer Studies e a Teoria Pós-Colonial.
A teoria pós-colonial diz respeito ao estudo de formas de diferenciação, bem como da experiências de povos e comunidades que passaram por experiência de colonização, analisando assim os impactos sofridos e gerados no contato com o colonizador. Já os Estudos Queer tem sua origem em meados na década de 1980 como crítica ao papel atribuído pelo construtivismo social na interpretação de culturas sexuais minoritárias. Nessa perspectiva a Teoria Queer centraliza o papel da sexualidade nas relações sociais e enfatiza os mecanismos de normalização que produz seres normais e abjetos segundo ordem binárias. Isso implica dizer que na teoria queer as identidades hegemônicas são construídas por meio de elaborações de identidades inferiorizadas, abjetas e subalternas; o EU é construído em oposição a um outro, inferior e anormal. Um exemplo caro aos teóricos dessa vertente é que a heterossexualidade como regime normalizador da sociedade ocidental é construída em oposição à homossexualidade, que não apenas é seu outro, mas também aquilo sem o qual ela não se constitui ou conseguiria se definir.
Desde a década de 1990 a Teoria Queer  tem se aproximado cada vez mais dos Estudos Pós-Coloniais (não sem muitas tensões e desafios) e o papel da pura sexualidade como centralizadora das relações sociais tem sido reelaborado.  Nesta nova perspectiva a sexualidade tem sido adotada como um ponto nodal de interseção entre diferenças, ou marcadores sociais, tais como raça/cor, idade/geração, gênero, identidades sexuais, religião, classe econômica.
Todavia o ponto que me interessa nesse texto e sobre o qual me deterei é a interpretação convergente entre Queer Studies e Teoria Pós-Colonial sobre a Diáspora, fenômeno muito caro à compreensão do que seria o Reconstrucionismo.


Multiculturalismo e Diáspora
O multiculturalismo é um fenômeno típico da identidade pós-moderna, que pode ser  compreendido a partir da ideia do hiperespaço pós-moderno proposta do teórico Fredric Jameson (1989). Segundo Jameson, o espaço pós-moderno é marcado pela ausência de fronteiras nítidas que demarquem o pertencimento a um ou outro território – aliás, essas cartografias fraturadas que se revelam em mapas que determinam politicamente o que é um ou outro território são visivelmente questionadas como um mecanismo de estabilidade das nações.  Teóricos como Akhil Gupta e James Ferguson tem questionado constantemente os não-lugares dessas cartografias: qual o lugar dos que vivem na fronteira, dos imigrantes (materiais e simbólicos). Será que uma linha imaginária é mesmo eficiente a separar distinções culturais? Esses questionamentos seguem no sentido de perturbar a suposta ordem inerente no isomorfismo entre território e cultura, ou território e identidade presentes em ideias tais como as de que é vivemos a cultura estadunidense, por exemplo, ao visitar o país.
Ora, não é justamente o caso da proposta reconstrucionista? Vivemos em um não lugar; estamos aqui e simultaneamente lá – um lugar que simultaneamente é e deixa de ser o espaço a que nos reportamos quando dizemos Grécia. Como disse ao meu tio, há alguns dias, quando este ironicamente disse que eu só queria ser grego e grego é quem nasce na Grécia, repito, sob esta perspectiva que venho elaborando aqui: Grécia não é uma geografia – nessa ideia de pseudo cartografia a qual pretendo questionar.
Um dos teóricos mais importantes dos Queer Studies, Michael Warner, já no início dos anos 1990 apontava um impasse importante à comunicabilidade entre Queer Studies e Teoria Pós-Colonial é que o multiculturalismo, na época, pressupunha  uma organização étnica de identidades pautadas em ideias como família, língua e tradição – sendo estes valores tomadas como categorias essencializadas  e naturais. O essencialismo que marcava essa ideia de identidade seria impossível para um teórico Queer, mesmo que tomado como uma aceitação estratégia (o que Gaytri Spivak chamara de essencialismo estratégico). Nessa ótica, as alianças são retomadas por meio da desnaturalização da ideia de diáspora anteriormente proposta. As narrativas de origem que marcavam a diáspora, o retorno à origem é questionado; não se trata mais de agrupar as identidades por características como língua, raça/cor, tradição ou família. 
A diáspora reelaborada pela interpretação queer do multiculturalismo é então entendida em termos de filiação e contingência. Os sujeitos dentro de uma lógica complexa e não-cartesiana se organizam em comunidades coletivas marcadas por características não essencializadas, tais como destino, afiliação e redes de práticas e interesses comuns, como sugere David Eng.


Da Diáspora Reconstrucionista
Acredito que a diáspora pós-moderna que pode ser lida no fenômeno do Reconstrucionismo é marcado essencialmente pelos aspectos supramencionados. Apesar da presença de princípios como tradição e reelaboração desta tradição de modo a reproduzir os ritos de forma tão semelhante quanto possível, o movimento não se realiza como um saudosismo histórico. A proposta está no resgate de valores e práticas que seriam pertinentes ao mundo pós-moderno e que se perderam pelo processo histórico de construção e reelaboração das subjetividades e coletividades.
A construção da identidade coletiva nesse processo passa fundamentalmente pelo reconhecimento das individualidades, que nos moldes pré-estabelecidos são substituídas pela ideia de cidadania nos moldes helênicos clássicos (um cidadão é aquele que apresenta os valores morais e práticos exigidos; é preciso ter areté, ser kalós e agathos).  Essa ideia vai de encontro ao que diz Joan Scott, historiadora feminista, para quem “identidades de grupo definem indivíduos e renegam a expressão ou percepção plena de sua individualidade”.(2005, p. 15). Ou seja, não se trata de parâmetros discordantes, mas antes de um amplo grupo de conjuntos que se internalizam: ser um eu particular é algo que está interno em ser um reconstrucionista que está interno em outras demandas e identidades com as quais vivemos e nos movimentamos na sociedade.
Por ser um processo de reconstrução acredito que o movimento está pautado por uma ideia de mobilidade dinâmica: marcado inicialmente por um processo de reestabelecimento de vínculos com os destinos  imaginados pelos membros da comunidade e em seguida, essa comunidade reestabeleceria seus rumos – afinal, a reprodução sistemática dos ritos em um determinado momento exigiria a reelaboração destes, como já acontece, e o surgimento de novos ritos em exigência às novas demandas da comunidade.
As características do hiperespaço pós-moderno a que me referi anteriormente é outro aspecto marcante na constituição de identidades. Estas podem ser estabelecidas sem vínculo a uma ideia geográfica de território sob a qual este grupo se estabeleceria.
Acredito que a ideia do movimento reconstrucionista como uma comunidade imaginada que propicia o estabelecimento de identidades refere-se “tanto a um espaço físico demarcado quanto a agrupamentos de interação. [...] Algo em uma esfera pública transnacional tornou obsoleto qualquer sentido de comunidade ou localidade estritamente limitado e, ao mesmo tempo, permitiu a criação de formas de solidariedade e identidade que não repousam sobre uma apropriação do espaço em que a contiguidade e o contato pessoal sejam fundamentais” (Gupta; Ferguson: 2000, 34-35pp).  Esse espaço físico a que se refere os autores se referem podem ser relativizado pela demanda do mundo contemporâneo onde virtual é tão legítimo quanto o espaço concreto, sendo ambos possibilidades do real.
A ideia do Reconstrucionismo como um movimento de diáspora está pautada nas relações que os indivíduos estabelecem com estes como um destino, um conjunto de interesses e práticas compartilhadas. Nesse movimento o espaço físico, cartografado hermeticamente, não é veículo necessário às construções de identidades sociais coletivas e individuais, sendo os corpos e espaços virtualizados constructos que viabilizam as sociabilidades do grupo.  O espaço físico é reivindicado como uma forma de legitimar essas sociabilidades, mas não como forma de defini-las. As interações que se estabelecem virtualmente são formas de sociabilização e celebração inteligíveis para os membros, funcionando como um simulacro do fisicidade que a geografia representa.
Finalizo este ensaio com a crença de que, diferente do que se tem estabelecido, ao fazer as análises das propostas do movimento com base em fontes clássicas, as teorias e abordagens metodológicas pós-modernas e mais recentes possam também contribuir para um melhor entendimento da dinâmica sobre o qual o fenômeno se processa. Sendo um fenômeno relacionado ao destino, as negociações estabelecidas entre os adeptos com práticas e interesses comuns que se desenvolvem num presente que também é passado - passado este cronologicamente distante, mas culturalmente presente -  os teóricos da pós-modernidade podem contribuir sim para entender a demanda de grupos minoritários emergentes, mesmo com os desafios metodológicos que a discussão suscitaria.


Notas – Textos citados
- SCOTT, Joan. A Invisibilidade da Experiência. (1998)
 - GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. Mais além da cultura: espaço, identidade e política da diferença. (2000)
- ENG, David. Transnacional Adoption and Queer Diaspora. (2003)
- WARNER, Michael. Fear of a Queer Planet: Queer politics and social theory. (1993)

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