segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Fins de Ciclo: velhice, morte e ancestralidade

Nos dias de hoje, onde beleza e juventude são tomadas em dimensões absurdas – algo não muito diferente do que ocorria no mundo helênico clássico – a dimensão temporal e espacial daquilo que é fundador, que é ancestral, que enfim, estabelece laços, é esquecida ou perde espaço frente a outras medidas e necessidades em torno das quais a vida moderna se estabelece: um bom salário, o carro do ano, casa própria, relacionamento satisfatórios. E então vem a questão: de onde viemos e o que fazemos com isso?
Característica comum a muitas religiões étnicas pré-cristãs é o lugar de prestígio e importância atribuídos ao culto dos ancestrais. Por ancestrais entende-se toda a linhagem de predecessores (predominantemente) consanguíneos, mas em aspecto mais geral aqueles que se vinculam à família, estando assim na esfera do Oikos; dessa forma também se incluem nessa rede a partir dos tempos mais tardios da época clássica amigos muito devotados e heróis.
 O que gostaria de propor então é uma leitura dos ancestrais pautadas em dois aspectos, que não necessariamente se estabelecem de forma binária, havendo outras possibilidades que não estas, tratarei apenas das que me interessam nessa reflexão. Essas dimensões dizem respeito cadáver (seu trato e lugar) e as honras fúnebres (ou das funções da comunidade para com o morto), abordando-as de modo a entender como o trato com os mortos, na esfera da religião, passa necessariamente da esfera doméstica ao público.
 É bem sabido que o que temos de informação sobre a história da religião grega é em sua maior parte fonte de registros históricos e arqueológicos daquilo que se entende como religião civil, ou seja, o corpus de práticas e crenças defendidas pelas polis como “normativas” ou tradicionais. Isso implica em todo um aparato ritualístico e procedimental inteligível como um relacionamento saudável e adequado entre mortais e imortais. Em paralelo ao culto civil temos o culto doméstico, centrado na dimensão do privado, da casa. A casa em si guarda uma série de segredos e práticas que não devem sair desta dimensão porque dizem respeito unicamente àqueles que nela residem e dela sobrevivem. Na esfera do civil encontramos as manifestações públicas como as súplicas coletivas pela vitória nas guerras e pelo fim das secas; no doméstico encontramos práticas particulares algumas das quais não reconhecidas ou legitimadas pelo Estado.
O culto dos mortos encontra-se na interseção entre civil e doméstico. Apesar de pertencer predominantemente ao trato do lar, alguns cultos aos mortos e celebrações fúnebres ganham dimensões tão grades que passam a ser incorporadas nas práticas do Estado. É este o caso de alguns heróis, a exemplo do curador Melampo, cujo culto cresceu de forma tão surpreendente que as honras fúnebres oferecidas por devotos e familiares são incorporadas dentro do corpus ritualístico da pólis. Há ainda o culto aos mortos e ancestrais que tem sua origem dentro do próprio Estado, seja por pessoas que tiveram especial importância para a cidade – a exemplo de Teseu para a Ática – ou que estão envolvidos em atividades importantes para a cidade e morreram por isso.
Segundo o helenista do século XIX, Fustel de Coulanges, hoje um pouco esquecido por parte dos estudiosos, mas que ainda assim foi um importante pensador do mundo grego em seu tempo, é a partir de cultos domésticos como estes centrados nos mortos que surgem os deuses olímpicos. Essa idéia, apesar de controversa pela teoria histórica hoje, é também tomada por alguns helenistas mais recentes que tomam essa versão como uma possibilidade para o crescimento de religiões e cultos de mistérios. (cf. Kérenyi, 2005).
Apesar da aura de miasma na qual se envolve as honras fúnebres e o funeral em si, o sepultamento no mundo antigo não é visto como algo infausto. Como nos diz Coulanges, “não era pela ostentação da dor que se oficiavam as pompas fúnebres, mas pelo repouso e felicidade da alma do morto” (1979,13). Essa idéia é visível no canto XXII da Ilíada, a despeito do sepultamente do cadáver de Heitor.  Nesse exemplo vê-se as angústias do homem grego em dar a alma uma casa, aliás, devolvê-la à sua casa. Isso porque é na sua casa que o cadáver, o morto, agora consagrado sob o lugar de ancestral, de fundador, pode estender suas graças por sobre a família. Exemplos disso vemos por exemplo no Alceste de Eurípedes, quando este diz: “Tu, que és um deus sob a terra, seja-me propício”. Uma distinção todavia precisa ser feita. A importância do morto está no cadáver, no que é corpo, sendo efetivas assim a urgência em dar-lhe casa, dar-lhe uma cova. A corporalidade é sumária neste aspecto.
O morto é visto como forte e ativo mais pelo ser e pelo corpo que pela idéia da alma, diferente das crenças atuais. O corpo aqui desempenha um papel fundamental. O poder do morto encontra-se na força de seu corpo, o peso que impõe sobre os demais. É bem sabido que os gregos, ao menos na dimensão pública da religião, viam a alma como um sopro, algo sem idéia e sem vida, de modo que se poderia até pensar ser o corpo a dar vida à alma e não o oposto. Todavia esta é uma discussão que por agora não nos interessa.
No mundo antigo o corpo é reivindicado pela família; deve estar próximo, à entrada da casa regulando assim as proteções e bênçãos a quem reside na casa e a quem a freqüenta. Na mesma posição o morto malfazejo amaldiçoa – à família e aos visitantes.   
Ainda com esse poder, essa força sob o qual encontra-se a aura do culto aos mortos, este culto não é visto como obrigação ou dever de obediência. Estendendo a visão de Otto sobre o culto aos deuses para este aspecto particular das práticas religiosas, acredito que o culto aos mortos, dentro do corpus da religião, está relacionado a uma espécie de amor e não a um suposto dever de obediência e obrigação.
O deus grego não é um amo, não é uma vontade imperiosa. Como divindade exige reconhecimento e respeito – mas não sectarismo, nem obediência incondicional; menos ainda uma fé cega. (Otto, 2006: 119)
Como explica Otto mais a frente, apesar do temor da morte, o culto ao morto não se verifica por ser o homem “forçado a submeter-se”, mas sim por respeito e devoção aquilo que o morto representa para a família e para a comunidade. Sendo assim, suas ações, sua memória são honradas como exemplo de ser, de elaboração moral, caso o seja.  
Com o desenvolvimento da polis, o Estado desenvolve dispositivos de controle e regulação sobre nascimento e morte e doença, aspectos aos quais o miasma se liga mais rotineiramente. O surgimento de instituições como maternidades, casas de parto, cemitérios e hospitais implica uma paulatina revisão nas funções de família e Estado nos deveres para com o miasma. Similar à pesquisa da antropóloga Mary Douglas (Pureza e Perigo) observa-se que os rituais de purificação contribuem para o estabelecimento daquilo que é tabu. Todavia, aquilo que é tabu não pode ser rejeitado, antes são criados espaços de limpeza, arquiteturas higiênicas para vida, reprodução, doença e morte. É nesta dimensão que grandes rituais de cuidado aos mortos transpõem a dimensão do privado e do particular e tornam-se ferramenta regulamentar do Estado.
Tratando-se da especificidade de cada polis, não é possível pelo material a que tenho acesso identificar grandes rituais fúnebres pan-helênicos. Em todo caso, há alguns cultos que obtiveram maior destaque nas relações que extrapolam as dimensões da cidade e que foram registradas por alguns mitógrafos, historiadores ou tragediográfos em geral. A título de exemplo pode-se citar a celebração de Kataklismas, um festival ático centrado nas pessoas que morreram no mar. Neste tipo de ritual encena-se preces, clamores às vítimas, bem como os deuses que protegem o mar a exemplo dos Dioscuroi, Posídon, Afrodite entre outros são honrados pedindo-se proteção aos que vivem de atividades que se relacionam com o mar, como pescadores e comerciantes, além dos viajantes como um todo.
Á guisa de conclusão acredito que o aspecto maior a desta reflexão está na importância  atribuída àqueles que abriram espaço para que estivéssemos aqui, mesmo que, no contexto atual, com freqüência eles compartilhem de opiniões e crenças diferentes das nossas. Discordâncias desse tipo foram freqüentes em todos os momentos da história e, acredito, não devem afetar a relação de respeito e consideração a estabelecer-se com os mais velhos e com os que já se foram. Esse tipo de pensamento é recorrente em tradições religiosas politeístas e monoteístas do oriente  que sobreviveram apesar da ocidentalização, a exemplo do hinduísmo, da religião tradicional chinesa, e de maior parte das tradições budistas do Japão, para citar as mais recorrentes.  O envelhecimento é um aspecto importante de uma sociedade que vive cada vez mais. É preciso não apenas estarmos preparados para a velhice, mas entendê-la como um exercício de prudência e cuidado.
Ésto!

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