quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Da Microfísica dos (des)afetos


Certamente os problemas de relacionamento não são uma novidade do mundo contemporâneo. A esterilidade das relações e a  incomunicabilidade que é tão comumente repetida pelos autores pós-modernos já apareceu em momentos anteriores ao presente, salvo as distinções e graus pertinentes a cada época.

A tarefa de viver em comunidade certamente é um desafio, daí decorrem uma série de dilemas morais, éticos e junto a isse todos os dispositivos reguladores e contingentes das relações entre as pessoas no seio da sociedade. Em contraposição a necessidade premente de laços, de amigos e companheiros, os gregos reconheciam haver uma parte não educada do ser humano, reconhecia-se isso como uma virtude a que eu tenho costumeiramente chamado de "elaboração do ser", ou seja, uma série de posturas e condutas não catalogáveis por serem de esfera subjetiva e pessoal com o objetivo desenvolver no homem as virtudes da kalós, da areté e do agathos. Notoriamente os gregos reconheciam como bárbaros todo aquele que não fosse um semelhante, que não fosse "um grego", e acredito, isso implica substancialmente essa indisposição a elaboração de si nos termos helênicos da época clássica. Nesse contexto, os deuses olímpicos aparecem como modelos de ser, padrões que não necessariamente devem ser copiados, mas honrados. O devoto apresenta-se frente ao deus da forma mais limpa, mais honrosa. É preciso ser herói.

A questão, todavia, é que não necessariamente nossas redes de relações são feitas por amigos, vizinhos e familiares. A mesma necessidade premente de amigos nos imputa a possibilidade dos inimigos, dos desafetos. Como lidar com isso no processo de elaboração do ser para a honra, para a virtude, para a kalokagathias a que se referia Platão?

De modo geral, a amizade representava para os gregos um laço maior que o sangue ou o simples convívio, por isso as palavras tradicionalmente atribuídas a "amigo" (philos) é marcada em distinção a outras categorias tais como estrangeiros, vizinhos, concidadãos, colegas de trabalho e até mesmo esposa/marido e demais familiares. É como dizer que alguém pode ser seu "philos kai syngeneis" (amigo e parente), mas o laço de parentesco não constitui a amizade por si, contrapondo-se assim a dizeres modernos do tipo "seus pais são seus únicos amigos", ou "amizade de verdade só de mãe". Acredito que essas crenças que se fundem a um biologismo de aspectos que na verdade estão numa esfera do social e cultural precisam ser relativizados e problematizados para que assim possamos ter um real entendimento deles. A família estrutura-se por laços de dependência, parceria e responsabilidades distintas daquelas daqueles mecanismos de sociabilidade fora da esfera doméstica. As funções e expectativas que podemos estabelecer sobre uma mãe não são as mesmas que as esperadas de um "amigo". Uma família pode ser enriquecida por amigos, mas estas ainda assim são classes distintas, o que podemos ver por exemplo em Calicrátidas, um filósofo neopitagórigo, quando ele afirma "o bem que vem dos amigos contribui para a vida doméstica, que assim se torna maior e mais distinta, não apenas pela propriedade ou quantidade de parentes, mas também pela abundância de amigos" (In Sobre o Bem-Estar do Lar, apud Konstan: 2005, 79)². 

Mas, afinal, o que é um amigo?

Não acredito em qualquer tipo de fidelidade, e sendo assim, prezo pela responsabilidade e transparência. Fosse eu responder a esta pergunta seria tanto mais uma divagação pessoal no nível da subjetividade que qualquer outra interpretação sobre a história social da vida privada na Grécia Clássica ou Arcaica. Sendo assim a saída que encontro está em buscar entender o que não é um amigo, o que desclassifica alguém dessa categoria. Refletindo sobre todos os mitos que me vem a mente retratando a amizade entre mortais, deuses, daemons ou dessas classes com outras, reparo que são dois os elementos que desqualificam alguém da categoria de philos: a ingratidão e a desonra, sendo a primeira aquela que tem maior peso.

Ao pensar na amizade de Ártemis e Hipólito, Athenas e Hérakles, ou Ela mesma e Diomedes dentre tantos outros testemunhos exemplares de amizades que nos é trazido pela mitologia grega observo que a amizade é antes de tudo um exercício de admiração pela beleza ou nível de elaboração de si em outro e também de responsabilidade. Partindo da ideia de Platão para quem a amigo são dois corpos numa só mente, é preciso cuidar desses corpos para que a mente funcione em sintonia; é tarefa do philos preservar moral e fisicamente do outro. A amizade constitui-se então da ortopraxia cotidiana dos afetos, do cuidado e do zelo. É nesse aspecto que a Philia se relaciona a Philotes, filho da noite e que é personificado sobre a ternura.

É a ternura símbolo maior da amizade, porém não me refiro com ternura a esta concepção romântica do sentimento. Como filho de Nyx, Philote associa-se a uma série de outras divindades marcadas pela antiguidade e pela preservação do ancestral, como as Moiras, Gueras (a velhice), Momo (sarcasmo), Nêmesis e as Queres. É antes de tudo um potencial ativo, de preservação e cuidado, semelhante a seus irmãos. A ternura na dimensão do amor filia, do amor entre amigos é o sentimento de preservação e cuidado, do embate por um ser que lhe é importante, pelo cuidado. Ternura aqui é antes de tudo, a disposição para a ajudar, para estar próximo sempre que necessário.

Quebrada a ternura, seja pela desonra dos laços que fazem a amizade, a sua traição, ou pela ingratidão, inicia-se o regime do desafeto, da falta. Aliás, sobre essa ingratidão, já referida por mim como o maior dos males neste caso, Xenofonte³ aponta que já na infância as crianças eram ensinadas a odiar este tipo de conduta, pois "aqueles que são ingratos são também negligentes em relação aos deuses, aos pais, à pátria, e aos amigos". Mesmo referindo-se em seu texto às crianças persas, esse era também uma instrução comum entre as crianças gregas. Um amigo traidor era um incômodo, algo indesejável para toda a comunidade. É nesse aspecto que o amigo é um ponto de mutação, um lugar intermediário entre aquilo que constitui-se como obrigações do bom cidadão: os laços de consanguinidade e o seu dever para com a Pólis, o Estado. Assume assim uma importância fundamental, visto que é uma escolha deliberada do sujeito. Em todo caso, é preciso saber escolher seus amigos pelas virtudes.

Em contextos espaço-temporais como o nosso, marcado por construções de sentimento ainda muito instáveis a ponto de poder entendê-los, é complexo entender como são construídos os laços de amizade e companheirismo, motivo pelos quais eu acredito ser importante esse olhar para o passado. Possivelmente essa instabilidade e (im)possibilidade momentânea para o entendimento sejam os aspectos que mais contribuem para a sensação de inexistência desses valores, ou de sua fragilidade.

Retomando a ideia que me propus a debater, a inimizade surge como algo indesejável não só para o indivíduo, para a sociedade também. É nesse aspecto que a traição é tão presente tanto na mitologia como na própria história, operando como modelos punitivos e também como exemplo a não seguir.

Partindo de uma reflexão pautada na areté, entendemos que não há um código ou um catálogo de respostas para a ingratidão, a traição ou desonra. Cada situação tem demandas próprias e os gregos entendiam isso bem,  o que não implica que suas ações sempre fossem as certas. Em todo caso, o princípio está em que não há nada absolutamente bom ou mau, pelo contrário, esse binarismo não é tão somente rejeitado como desacreditado. A escolha do indivíduo deverá ser sempre marcada com a consciência da situação, do empenho em melhor solucionar. Recolhendo alguns exemplos na mitologia, várias são as soluções tomadas: a vingança, a retaliação, o afastamento, o apagamento, ou até mesmo o simples ato de ignorar. Em todos os casos prevalece a imagem de que não é apenas desonrado aquele que é traído, mas substancialmente ambos são feridos pela desonra, ambos estão sujos, e por isso, é preciso providência de ambas as partes. Daquele que não cuidou de seus afetos, instaurando assim um desequilíbrio nas relações da pólis, seja pela negligência, seja pela incorreção, o estado precisa ser reparado.

Acredito que transpondo esse pensamento pro mundo moderno, certamente há mais uma diversidade de modelos e formas de responder as quais não interessavam ao mundo grego, mas que podem ser revistas hoje. O diálogo, o esclarecimento podem ser uma dessas, pois apesar de presentes, afetivam-se mais na esfera das relações entre estado, nos laços de amizade entre governantes, do que na esfera privada. Em todo caso, acredito e os gregos são um testemunho do sucesso dessa forma de pensar, não há respostas prontas. Cada um é senhor de si para cuidar de seus problemas, seja por meio de equações, inequações, ou simplesmente respostas em branco, em todo caso, essa tão minuciosa microfísica dos (des)afetos não se fará simplificada, constituindo sempre um universo de desafios e contínuos questionamentos.


Notas:
¹ - Athena ajuda Diomedes. Detalhe de amphora ática.
² - KONSTAN, David. A Amizade no Mundo Clássico. Trad. de  Maria E. Fiker. São Paulo: Odysseus, 2005; 
³- A Educação de Ciro  

Sugestões de Leitura
-  Elisabeth Belfiore. Muder among friends: violation of philia in Greek tragedy. Oxford: Oxford Press, 2000.
- David Konstan: The Emotions of the Ancient Greek: studies in Aristotle and classical literature. Oxford: Oxford Press, 2006.

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