O presente texto é a tradução do artigo "Construction and Use of Anciente Greek Poppets", escrito por Apollonius Sophistes e publicado em 1996. Ao longo do texto foram inseridas algumas alterações de caráter linguístico e extra-linguístico de modo a torná-lo mais fluído aos leitores, independente do nível de familiaridade que tenham com a cultura e as práticas religiosas dos povos gregos antigos.
Nesse artigo se trata especificamente sobre os usos e construção das kolossoi, espécies de bonecas empregadas para realizar maldições e que constituem um dos poucos recursos de feitiçaria publicamente empregadas na antiguidade. É preciso lembrar que os gregos não viam esse tipo de prática com bons olhos; em algumas cidades e vilas as práticas de feitiçaria eram proibidas por constituições, em outras era tida como prática atrasada de povos bárbaros- porém, esse é um ponto que por agora não nos interessa discutir. Boa leitura!
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I. Introdução
Este ensaio trata do uso e construção
de antigas bonecas gregas (efígies rituais, bonecas vodus); estas bonecas são a
substância basilar das “amarrações e encarceramento das forças malignas”, como
dito por Christopher Faraone, que será citado ao longo de todo este artigo. No
grego antigo, uma imagem ritual era frequentemente chamada de “kolossos”,
palavra de origem incerta que pode ser usada para referir-se a efígies de
qualquer tipo. Os usos dessas efígies pelos gregos datam de tempos anteriores
ao século IV AEC e são similares às formas de uso espalhadas pelo Mediterrâneo,
considerando, obviamente, que há diferença. Uma característica distintiva do
uso grego das Kolossoi é que, em princípio, seu uso é defensivo; é geralmente
utilizada para conter uma força hostil em vez de destruí-la.
O propósito geral das kolossoi é a
“amarração” de alguma forma, mas essa amarração pode ser aplicada a várias
formas de ser e para vários propósitos. Primeiro: as amarrações podem ser
aplicadas às deidades, que não podem ser destruídas, mas podem ser restringidas
(mesmo assim essa limitação tem que ser entendida como uma ação ritual dada
pelo deus como um meio específico pelo qual sua energia é direcionada para um
propósito específico). Algumas vezes, as kolossoi são usadas para conter uma
deidade perigosa, que pode causar prejuízos ou que é tida como favorita dos
inimigos. Assim, Ares, deus da matança e das mortes nos campos de batalha, pode
ser amarrado para dar segurança na batalha ou para reduzir a possibilidade de
uma guerra.
As deidades protetoras também podem ser
amarradas para impedi-las de partir. É o caso dos atenienses e sua Nike áptera
- lhe tiram as asas para impedir que Ela parta da cidade. Esse pode ser também
o sentido da paradoxal história de Pandora prendendo a esperança na jarra após
ter deixado escapar todos os males do mundo – frequentemente as kolossoi são
presas em jarros potes. Nesse sentido, Ares algumas vezes é preso como uma
divindade protetora, ainda que na ausência de inscrições seja difícil dizer se
ele está sendo preso como uma força hostil ou amigável. Ainda assim, Ele pode
ser tomado em ambos os aspectos ao mesmo tempo: preso para ficar aqui e nos
proteger e para impedi-Lo de bandear-se para o lado inimigo. Podemos ver também
representações de Hefesto como um deus que pode tanto amarrar como desamarrar (NT:
para isso veja como ele prende Ares e Afrodite na cama para provar a
infidelidade da deusa do amor, ou como Ele prende Hera ao trono de ouro na sua
volta ao Olimpo).
Segundo ponto: as kolossoi podem também
ser usadas para conter fantasmas e outros hikesioi
apaktoi (visitantes hostis). Novamente, eles não podem ser mortos – afinal,
já estão mortos -, mas podem ser presos. No caso de fantasmas, especialmente, a
cerimônia de amarração pode seguir os costumes funerários da região e então
ajudar a garantir que o fantasma definitivamente será mandado e levado para o
mundo dos mortos.
Terceiro: kolossoi são usadas para
amarrar os inimigos mortais. Esses inimigos podem ser um goês (feiticeiro) que mandou um eidôlon ou um phasma
(fantasmas) contra alguém, ou um inimigo mundano (como por exemplo os
opositores em ações judiciais). Nos casos em que não se conhece o opositor um
par de kolossoi – um masculino e outro feminino – são utilizadas. Quando o
número de inimigos é maior quer um (como uma família ou todo um exército)
comumente se usa três kolossoi seguindo o princípio de pars pro totó (das
partes ao todo). Finalmente, as kolossoi podem ser utilizadas para prender um
companheiro – em qualquer aspecto – a um juramento.
Podemos falar brevemente sobre as
kolossoi eróticas, que geralmente pretendiam amarrar alguém para que este se
apaixonasse, fosse fiel ou para afastar rivais. Esse é um tópico grande e não
será discutido ao longo deste ensaio, mas a maior parte dos princípios
aplicados na sua construção e uso são os mesmos descritos aqui (cf. Winkler,
1991).
Um importante uso das kolossoi para
defesa é a proteção das fronteiras, razão pela qual elas poderiam ser presas aos
muros, cercas ou outras fronteiras. Também eram usadas tanto para a defesa
privada, das casas, como para a defesa pública, da cidade ou vila. Em outras
oportunidades já pude indicar como eles eram utilizados pra proteger, por
exemplo, um templo e outras construções; o uso público também pode seguir no
sentido de proteger contra uma invasão inimiga. Já o uso privado é tipicamente
com o propósito de proteger os indivíduos e suas famílias.
Em alguns casos, quando uma proteção
permanente é necessária, as kolossoi são regularmente amarradas novamente. Um
exemplo disso é a amarração anual de Ares para a proteção da cidade de Syedra
(NT: atualmente localizada no território da Turquia). Um ano antes Ele é
desamarrado durante um período de liberdades semelhante a Saturnália romana
(isso pode ser relacionado ao que nos conta Homero no canto V da Ilíada, quando
Ares é preso em um caldeirão por treze meses lunares). Outras divindades
frequentemente presas para proteção são: Ártemis, Dioniso, Hera e Athena.
III. Construção
Voltemo-nos agora à construção das
kolossoi. Elas poderiam ser feitas de metal (como bronze, prata ou chumbo, que posteriormente
tornou-se o metal mais comum), madeira, argila, cera ou materiais maleáveis
similares. A imagem geralmente não era realista, já que a conexão da boneca com
um indivíduo não dependia da aparência ou similaridade. A aparência está na
verdade relacionada a outros significados, como será descrito mais a frente.
Geralmente a figura está nua e há um exagero comum nas genitálias, pés ou
outras partes do corpo. Isso, por sua vez, relaciona-se ao princípio de
utilizar imagens obscenas ou chocantes para afastar mal e outras formas de
perigo (como por exemplo, a figa e amuletos fálicos).
Geralmente também, algumas partes da
figura são torcidas para trás, para indicar a incapacidade do sujeito. A cabeça
também pode ser torcida, ou, por fim, deixada absolutamente distante do resto
do corpo, para causar confusão. Também são comuns a torção do pé, e algumas
vezes, dos braços ou do tronco inteiro (Como Hefesto, que algumas vezes é
representado com os pés para trás). Em alguns casos, o kolossos são feitos com
essas partes já para trás, mas o mais comum é serem feitos normais e serem
torcidos depois.
A perfuração com pregos ou agulhas
(treze é o número mais popular) tipicamente feitas com ferro ou bronze; presas
de animais e outros matérias também podiam ser utilizados nesse processo. Cada agulha
ou prego transfixa alguma parte do corpo, representando a faculdade que desse
modo será paralisada – mas sem destruí-la. Por exemplo, os pregos através dos
olhos, ouvidos e boca paralisam as faculdades cognitivas, através do coração pode
restringir a vontade própria, e através dos membros podem causar a paralisia ou
perda da força.
A kolossos também pode ser mutilado
para restringir o inimigo. Por exemplo, a cabeça pode ser decepada e amarrada
em separado do corpo (para evitar que seja recolocada), ou a efígie pode ser
queimada, derretida, esmagada, pisoteada, etc (essas medidas agressivas
normalmente não são utilizadas para os fantasmas, em vez disso é dado um ritual
fúnebre ao colossos. Os fantasmas são normalmente chamados pelo nome por três
dias ou três vezes em um dia para convocar a casa ao funeral deles.).
Além de serem transfixadas, as figuras
normalmente são amarradas. Por exemplo: os braços e pernas podem ser amarrados
(normalmente para trás), e algumas vezes os braços são amarrados às pernas.
Poderia haver um colar ao redor do pescoço ou um algo fechando a boca (que
poderia ser um prego ou parafuso). Algumas vezes a kollosso era amarrada junto
a outros objetos, como um amuleto erótico.
Os materiais que poderiam ser
utilizados para amarrar incluir faixas de chumbo, arames de bronze, agulhas e
correntes de ferro (para kalossoi maiores). A figura também podia ser amarrada
a si mesma, por exemplo, com a mão direita na sua própria boca (ainda assim
presa pelos pregos) e a mão esquerda no ânus.
A kolossos é identificada com sua vítima
por encantos ou inscrições, sendo normalmente utilizado os dois. A pessoa
(deidade, fantasma ou pessoa) é mencionada pelo nome, se seu nome é conhecido, incluindo-se
também frequentemente o nome dos seus patronímicos ou o nome da mãe do sujeito,
por exemplo: Fulano, filho de sicrano, que perturbou....”. O nome do indivíduo
é geralmente inscrito na parte esquerda da colossos, sendo mais comum no
quadril, perna e braço, e pode também ser escrito com tinta vermelha. A
inscrição é também acompanhada por uma fórmula de amarração (como será descrita
a seguir).
A kalossos também pode ser identificada
com uma pessoa pela incorporação de sua Ousia (substância): coisas conectadas
como sujeito, como por exemplo, uma pedaço de cabelo, pedaços de unhas ou um
pouco de roupas podem ser incorporados ao interior do boneco de cera. Por fim, as kolossoi de cera ou argila podem
ser modeladas em torno de um papiro contento um feitiço mencionando o nome da
vítima.
As kolossoi pertencem ao
mesmo grupo de práticas dos Defixiones
ou Katasdemoi (as chamadas “tabuletas
de maldição"), já que podem ser feitas grandes o suficiente pra acomodar nomes e
feitiços. Assim, podemos ter kolossoi na forma de tábuas ou folhas de chumbo trazendo
inscrições das vítimas possivelmente vinculadas a espíritos hostis. Como folhas
de chumbo, ou papiros equivalentes, podem ser dobradas ou enroladas, e também
podem ser espetadas com pregos (por isso, defixio,
de defigo, fixar para baixo) para realizar a amarração
IV - IV. Katadesmoi
Enquanto o selvagem Ares se encontre neste solo
Além da identificação
da kolossos com sua vítima, há geralmente alguma fórmula de amarração
(Katadesmos – pronúncia: ká-TÁ-dés-môs) que pode ser inscrita na kolossos, como
dito anteriormente. As duas formas ainda podem vir juntas (kolossos e
katasdemos). Elas podem tomar diversas formas, algumas mais outras menos
elaboradas. As inscrições podiam ser feitas ao avesso para aumentar o nível de
confusão da vítima. O feitiço falado é geralmente acompanhado por ações rituais
como a mutilação, perfuração e amarração da figura; além disso, o defigens (“amarrador”) pode tocar o chão
ao invocar as deidades ctônicas, ou erguê-las ao céu para chamar pelos deuses
celestes.
Em uma situação
simples o defigens apenas declara: “Por este meio eu amarro ____”.
Outra alternativa é
expressão de um desejo: “Possa ___ ser derrotado”.
Ou, “Que _____ seja dominado”.
O feitiço pode tomar
a forma de uma prece para algumas divindades para assim reter a vítima.
Frequentemente a vítima é entregue ou prometida para a divindade (como deixado
sob sua tutela, presa) – uma coisa esperta a fazer, já que a responsabilidade
da amarração está com os deuses. Embora se pudesse solicitar a qualquer deus ou
deusa, era particularmente mais adequado apelar durante a sagração para Hermes
Katokhos (o que restringe). Outras divindades chamadas para a amarração são Gaia,
Hécate Khtonia e Perséphone.
Eis alguns exemplos
de fórmulas de amarração.
Ó Hermes Katokhos, prende ________.
Eu prometo _________ aos deuses,
A Geia, Hécate e Perséphone.
Eu amarro _____, nascido de _______
Na tua presença, Hermes Katokhos
Que ele/a seja preso
Em mãos, pés e corpo.
Finalmente, pelo princípio mágico de similia similibus (similar para
similares) o encantamento pode pedir que a vítima seja analogicamente presa
pela amarração da efígie:
Por estes meios eu prendo ____ a laços de chumbo.
Analogias podem ser
invocadas com o material da kolossos ou sua disposição:
Assim como o chumbo é frio e impotente
Também frio e impotente _________ é.
Frio em saber, pensamento e memória!
Sua alma, mente , língua e planos;
Que todas essas coisas sejam retorcidas.
Para uma kolossos enterrada
em um cemitério:
Assim como os mortos são impotentes e imóveis
Assim também __________ será;
impotentes e imóveis serão seus pés, mãos e corpo!
Eis uma fórmula
típica para amarrar as partes de um juramento:
Assim como derrete e escorre essa imagem
Faça com que quem quebre esta promessa
Da mesma forma se derreta e desfaça
Que pereça todas suas sementes e propriedades!
E por fim, uma fórmula
recorrente usada para proteção das fronteiras:
Enquanto o selvagem Ares se encontre neste solo
Por aqui homens inimigos não serão encontrados
O poder do feitiço
cresce pela repetição e pela métrica; assim também múltiplas divindades podem
ser invocadas e outros epítetos e títulos podem ser listados.
Algumas
vezes, a kolossos é ritualmente destruída, mas para as amarrações o mais comum era
que fossem confinadas e enterradas. Primeiro, a kolossos é hermeticamente
confinada em uma caixa de chumbo com tampa, embrulhada em uma folha também de
chumbo, ou colocada em um caldeirão ou caixa de cobre ou bronze (Mas, o chumbo,
é claro, ainda é o símbolo maior da amarração). O recipiente onde se encontra a
kolossos é frequentemente preenchido com inscrições, dentro ou fora, com nomes,
feitiços, faixas e ou figuras amarradas. Isso também pode ser escrito e
desenhada em papiros, que então são usados para embrulhar a kolossos. Em alguns
casos, o kolossos e o recipiente é deixado em um pote de argila, para prendê-la
mais ainda. Por fim, você pode se desfazer da kolossos: elas podem ser deixadas
em águas profundas, tais como poços ou mesmo no oceano, ou, como mais comumente
acontecia, enterradas, por exemplo, em um cemitério, santuário ou terra
infértil e não cultivável. Tanto a terra como a água são caminhos que levam aos deuses ctônicos.
Esse tipo de disposição torna mais difícil que a kolossos seja encontrada pela
vítima, fazendo assim com que a ligação entre ambas se perca.
VI. Desamarração
É
necessário ainda, mesmo que em poucas palavras, comentemos um pouco sobre a remoção
das amarrações (o que se chama eklusis
– pronúncia: ÉK-lu-sis). Em geral, só o defigens
ou os deuses que foram invocados são capazes de dissolver os vínculos da amarração.
Nesses casos, a melhor opção é que a vítima ofereça um sacrifício e faça preces
aos deuses, ou para os deuses que têm o amarrado, ou, caso eles não sejam
conhecidos, para todos. A amarração também pode ser desfeita se outro defigens
ou a própria vítima encontram a kolossos e sistematicamente a desamarram – por exemplo,
removendo faixas e pregos, colocando a cabeça e membros na posição certa, etc.
Referências
- Faraone, Christopher A., “Binding and Burying
the Forces of Evil: The Defensive Use of ‘Voodoo Dolls’ in Ancient
Greece,” Classical Antiquity, Vol. 10, No. 2 (Oct. 1991), pp.
165-205, with 7 figs. & 13 pls.
- Faraone,
Christopher A., “The Agonistic Context of Early Greek Binding Spells,” in
Christopher A. Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera: Ancient
Greek Magic and Religion, New York: Oxford University Press, 1991, pp.
3-32.
- Ogden,
Daniel, Magic, Witchcraft, and Ghosts in the Greek and Roman Worlds: A
Sourcebook, Oxford: Oxford University Press, 2002, esp. ch. 12.
- Strubbe,
J. H. M., “‘Cursed Be He That Moves My Bones’,” in Christopher A. Faraone
& Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera: Ancient Greek Magic and
Religion, New York: Oxford University Press, 1991, pp. 33-59.
- Winkler, John J., “The Constraints of Eros,”
in Christopher A. Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera:
Ancient Greek Magic and Religion, New York: Oxford University Press,
1991, pp. 214-43.
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O texto fonte com as imagens originais podem ser consultado AQUI.
Sensacional, Th! Parabéns!
ResponderExcluirMe interessou especialmente essa fórmula de Ares para proteção de fronteiras.
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