sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Uso e Construção das Antigas Kolossoi Gregas

O presente texto é a tradução do artigo "Construction and Use of Anciente Greek Poppets", escrito por Apollonius Sophistes e publicado em 1996. Ao longo do texto foram inseridas algumas alterações de caráter linguístico e extra-linguístico de modo a torná-lo mais fluído aos leitores, independente do nível de familiaridade que tenham com a cultura e as práticas religiosas dos povos gregos antigos.

Nesse artigo se trata especificamente sobre os usos e construção das kolossoi, espécies de bonecas empregadas para realizar maldições e que constituem um dos poucos recursos de feitiçaria publicamente empregadas na antiguidade. É preciso lembrar que os gregos não viam esse tipo de prática com bons olhos; em algumas cidades e vilas as práticas de feitiçaria eram proibidas por constituições, em outras era tida como prática atrasada de povos bárbaros- porém, esse é um ponto que por agora não nos interessa discutir. Boa leitura!

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I. Introdução

Este ensaio trata do uso e construção de antigas bonecas gregas (efígies rituais, bonecas vodus); estas bonecas são a substância basilar das “amarrações e encarceramento das forças malignas”, como dito por Christopher Faraone, que será citado ao longo de todo este artigo. No grego antigo, uma imagem ritual era frequentemente chamada de “kolossos”, palavra de origem incerta que pode ser usada para referir-se a efígies de qualquer tipo. Os usos dessas efígies pelos gregos datam de tempos anteriores ao século IV AEC e são similares às formas de uso espalhadas pelo Mediterrâneo, considerando, obviamente, que há diferença. Uma característica distintiva do uso grego das Kolossoi é que, em princípio, seu uso é defensivo; é geralmente utilizada para conter uma força hostil em vez de destruí-la.

II. Propósitos

O propósito geral das kolossoi é a “amarração” de alguma forma, mas essa amarração pode ser aplicada a várias formas de ser e para vários propósitos. Primeiro: as amarrações podem ser aplicadas às deidades, que não podem ser destruídas, mas podem ser restringidas (mesmo assim essa limitação tem que ser entendida como uma ação ritual dada pelo deus como um meio específico pelo qual sua energia é direcionada para um propósito específico). Algumas vezes, as kolossoi são usadas para conter uma deidade perigosa, que pode causar prejuízos ou que é tida como favorita dos inimigos. Assim, Ares, deus da matança e das mortes nos campos de batalha, pode ser amarrado para dar segurança na batalha ou para reduzir a possibilidade de uma guerra.

As deidades protetoras também podem ser amarradas para impedi-las de partir. É o caso dos atenienses e sua Nike áptera - lhe tiram as asas para impedir que Ela parta da cidade. Esse pode ser também o sentido da paradoxal história de Pandora prendendo a esperança na jarra após ter deixado escapar todos os males do mundo – frequentemente as kolossoi são presas em jarros potes. Nesse sentido, Ares algumas vezes é preso como uma divindade protetora, ainda que na ausência de inscrições seja difícil dizer se ele está sendo preso como uma força hostil ou amigável. Ainda assim, Ele pode ser tomado em ambos os aspectos ao mesmo tempo: preso para ficar aqui e nos proteger e para impedi-Lo de bandear-se para o lado inimigo. Podemos ver também representações de Hefesto como um deus que pode tanto amarrar como desamarrar (NT: para isso veja como ele prende Ares e Afrodite na cama para provar a infidelidade da deusa do amor, ou como Ele prende Hera ao trono de ouro na sua volta ao Olimpo). 

Segundo ponto: as kolossoi podem também ser usadas para conter fantasmas e outros hikesioi apaktoi (visitantes hostis). Novamente, eles não podem ser mortos – afinal, já estão mortos -, mas podem ser presos. No caso de fantasmas, especialmente, a cerimônia de amarração pode seguir os costumes funerários da região e então ajudar a garantir que o fantasma definitivamente será mandado e levado para o mundo dos mortos.

Terceiro: kolossoi são usadas para amarrar os inimigos mortais. Esses inimigos podem ser um goês (feiticeiro) que mandou um eidôlon ou um phasma (fantasmas) contra alguém, ou um inimigo mundano (como por exemplo os opositores em ações judiciais). Nos casos em que não se conhece o opositor um par de kolossoi – um masculino e outro feminino – são utilizadas. Quando o número de inimigos é maior quer um (como uma família ou todo um exército) comumente se usa três kolossoi seguindo o princípio de pars pro totó (das partes ao todo). Finalmente, as kolossoi podem ser utilizadas para prender um companheiro – em qualquer aspecto – a um juramento.

Podemos falar brevemente sobre as kolossoi eróticas, que geralmente pretendiam amarrar alguém para que este se apaixonasse, fosse fiel ou para afastar rivais. Esse é um tópico grande e não será discutido ao longo deste ensaio, mas a maior parte dos princípios aplicados na sua construção e uso são os mesmos descritos aqui (cf. Winkler, 1991).   

Um importante uso das kolossoi para defesa é a proteção das fronteiras, razão pela qual elas poderiam ser presas aos muros, cercas ou outras fronteiras. Também eram usadas tanto para a defesa privada, das casas, como para a defesa pública, da cidade ou vila. Em outras oportunidades já pude indicar como eles eram utilizados pra proteger, por exemplo, um templo e outras construções; o uso público também pode seguir no sentido de proteger contra uma invasão inimiga. Já o uso privado é tipicamente com o propósito de proteger os indivíduos e suas famílias.

Em alguns casos, quando uma proteção permanente é necessária, as kolossoi são regularmente amarradas novamente. Um exemplo disso é a amarração anual de Ares para a proteção da cidade de Syedra (NT: atualmente localizada no território da Turquia). Um ano antes Ele é desamarrado durante um período de liberdades semelhante a Saturnália romana (isso pode ser relacionado ao que nos conta Homero no canto V da Ilíada, quando Ares é preso em um caldeirão por treze meses lunares). Outras divindades frequentemente presas para proteção são: Ártemis, Dioniso, Hera e Athena. 

III. Construção

Voltemo-nos agora à construção das kolossoi. Elas poderiam ser feitas de metal (como bronze, prata ou chumbo, que posteriormente tornou-se o metal mais comum), madeira, argila, cera ou materiais maleáveis similares. A imagem geralmente não era realista, já que a conexão da boneca com um indivíduo não dependia da aparência ou similaridade. A aparência está na verdade relacionada a outros significados, como será descrito mais a frente. Geralmente a figura está nua e há um exagero comum nas genitálias, pés ou outras partes do corpo. Isso, por sua vez, relaciona-se ao princípio de utilizar imagens obscenas ou chocantes para afastar mal e outras formas de perigo (como por exemplo, a figa e amuletos fálicos).

Geralmente também, algumas partes da figura são torcidas para trás, para indicar a incapacidade do sujeito. A cabeça também pode ser torcida, ou, por fim, deixada absolutamente distante do resto do corpo, para causar confusão. Também são comuns a torção do pé, e algumas vezes, dos braços ou do tronco inteiro (Como Hefesto, que algumas vezes é representado com os pés para trás). Em alguns casos, o kolossos são feitos com essas partes já para trás, mas o mais comum é serem feitos normais e serem torcidos depois.

A perfuração com pregos ou agulhas (treze é o número mais popular) tipicamente feitas com ferro ou bronze; presas de animais e outros matérias também podiam ser utilizados nesse processo. Cada agulha ou prego transfixa alguma parte do corpo, representando a faculdade que desse modo será paralisada – mas sem destruí-la. Por exemplo, os pregos através dos olhos, ouvidos e boca paralisam as faculdades cognitivas, através do coração pode restringir a vontade própria, e através dos membros podem causar a paralisia ou perda da força.

A kolossos também pode ser mutilado para restringir o inimigo. Por exemplo, a cabeça pode ser decepada e amarrada em separado do corpo (para evitar que seja recolocada), ou a efígie pode ser queimada, derretida, esmagada, pisoteada, etc (essas medidas agressivas normalmente não são utilizadas para os fantasmas, em vez disso é dado um ritual fúnebre ao colossos. Os fantasmas são normalmente chamados pelo nome por três dias ou três vezes em um dia para convocar a casa ao funeral deles.).

Além de serem transfixadas, as figuras normalmente são amarradas. Por exemplo: os braços e pernas podem ser amarrados (normalmente para trás), e algumas vezes os braços são amarrados às pernas. Poderia haver um colar ao redor do pescoço ou um algo fechando a boca (que poderia ser um prego ou parafuso). Algumas vezes a kollosso era amarrada junto a outros objetos, como um amuleto erótico.

Os materiais que poderiam ser utilizados para amarrar incluir faixas de chumbo, arames de bronze, agulhas e correntes de ferro (para kalossoi maiores). A figura também podia ser amarrada a si mesma, por exemplo, com a mão direita na sua própria boca (ainda assim presa pelos pregos) e a mão esquerda no ânus.

A kolossos é identificada com sua vítima por encantos ou inscrições, sendo normalmente utilizado os dois. A pessoa (deidade, fantasma ou pessoa) é mencionada pelo nome, se seu nome é conhecido, incluindo-se também frequentemente o nome dos seus patronímicos ou o nome da mãe do sujeito, por exemplo: Fulano, filho de sicrano, que perturbou....”. O nome do indivíduo é geralmente inscrito na parte esquerda da colossos, sendo mais comum no quadril, perna e braço, e pode também ser escrito com tinta vermelha. A inscrição é também acompanhada por uma fórmula de amarração (como será descrita a seguir).  

A kalossos também pode ser identificada com uma pessoa pela incorporação de sua Ousia (substância): coisas conectadas como sujeito, como por exemplo, uma pedaço de cabelo, pedaços de unhas ou um pouco de roupas podem ser incorporados ao interior do boneco de cera.  Por fim, as kolossoi de cera ou argila podem ser modeladas em torno de um papiro contento um feitiço mencionando o nome da vítima.


As kolossoi pertencem ao mesmo grupo de práticas dos Defixiones ou Katasdemoi (as chamadas “tabuletas de maldição"), já que podem ser feitas grandes o suficiente pra acomodar nomes e feitiços. Assim, podemos ter kolossoi na forma de tábuas ou folhas de chumbo trazendo inscrições das vítimas possivelmente vinculadas a espíritos hostis. Como folhas de chumbo, ou papiros equivalentes, podem ser dobradas ou enroladas, e também podem ser espetadas com pregos (por isso, defixio, de defigo, fixar para baixo) para realizar a amarração


IV - IV. Katadesmoi
Além da identificação da kolossos com sua vítima, há geralmente alguma fórmula de amarração (Katadesmos – pronúncia: ká-TÁ-dés-môs) que pode ser inscrita na kolossos, como dito anteriormente. As duas formas ainda podem vir juntas (kolossos e katasdemos). Elas podem tomar diversas formas, algumas mais outras menos elaboradas. As inscrições podiam ser feitas ao avesso para aumentar o nível de confusão da vítima. O feitiço falado é geralmente acompanhado por ações rituais como a mutilação, perfuração e amarração da figura; além disso, o defigens (“amarrador”) pode tocar o chão ao invocar as deidades ctônicas, ou erguê-las ao céu para chamar pelos deuses celestes.

Em uma situação simples o defigens apenas declara: “Por este meio eu amarro ____”.
Outra alternativa é expressão de um desejo: “Possa ___ ser derrotado”. Ou, “Que _____ seja dominado”.

O feitiço pode tomar a forma de uma prece para algumas divindades para assim reter a vítima. Frequentemente a vítima é entregue ou prometida para a divindade (como deixado sob sua tutela, presa) – uma coisa esperta a fazer, já que a responsabilidade da amarração está com os deuses. Embora se pudesse solicitar a qualquer deus ou deusa, era particularmente mais adequado apelar durante a sagração para Hermes Katokhos (o que restringe). Outras divindades chamadas para a amarração são Gaia, Hécate Khtonia e Perséphone.

Eis alguns exemplos de fórmulas de amarração.  
Ó Hermes Katokhos, prende ________.

Eu prometo _________ aos deuses,
A Geia, Hécate e Perséphone.

Eu amarro _____, nascido de _______
Na tua presença, Hermes Katokhos
Que ele/a seja preso
Em mãos, pés e corpo.

Finalmente, pelo princípio mágico de similia similibus (similar para similares) o encantamento pode pedir que a vítima seja analogicamente presa pela amarração da efígie:

Por estes meios eu prendo ____ a laços de chumbo.

Analogias podem ser invocadas com o material da kolossos ou sua disposição:
Assim como o chumbo é frio e impotente
Também frio e impotente _________ é.
Frio em saber, pensamento e memória!
Sua alma, mente , língua e planos;
Que todas essas coisas sejam retorcidas.

Para uma kolossos enterrada em um cemitério:
Assim como os mortos são impotentes e imóveis
Assim também __________ será;
impotentes e imóveis serão seus pés, mãos e corpo!

Eis uma fórmula típica para amarrar as partes de um juramento:
Assim como derrete e escorre essa imagem
Faça com que quem quebre esta promessa
Da mesma forma se derreta e desfaça
Que pereça todas suas sementes e propriedades!

E por fim, uma fórmula recorrente usada para proteção das fronteiras:

Enquanto o selvagem Ares se encontre neste solo
Por aqui homens inimigos não serão encontrados

O poder do feitiço cresce pela repetição e pela métrica; assim também múltiplas divindades podem ser invocadas e outros epítetos e títulos podem ser listados.

V. Disposição
Algumas vezes, a kolossos é ritualmente destruída, mas para as amarrações o mais comum era que fossem confinadas e enterradas. Primeiro, a kolossos é hermeticamente confinada em uma caixa de chumbo com tampa, embrulhada em uma folha também de chumbo, ou colocada em um caldeirão ou caixa de cobre ou bronze (Mas, o chumbo, é claro, ainda é o símbolo maior da amarração). O recipiente onde se encontra a kolossos é frequentemente preenchido com inscrições, dentro ou fora, com nomes, feitiços, faixas e ou figuras amarradas. Isso também pode ser escrito e desenhada em papiros, que então são usados para embrulhar a kolossos. Em alguns casos, o kolossos e o recipiente é deixado em um pote de argila, para prendê-la mais ainda. Por fim, você pode se desfazer da kolossos: elas podem ser deixadas em águas profundas, tais como poços ou mesmo no oceano, ou, como mais comumente acontecia, enterradas, por exemplo, em um cemitério, santuário ou terra infértil e não cultivável. Tanto a terra como a água  são caminhos que levam aos deuses ctônicos. Esse tipo de disposição torna mais difícil que a kolossos seja encontrada pela vítima, fazendo assim com que a ligação entre ambas se perca.

VI. Desamarração
É necessário ainda, mesmo que em poucas palavras, comentemos um pouco sobre a remoção das amarrações (o que se chama eklusis – pronúncia: ÉK-lu-sis). Em geral, só o defigens ou os deuses que foram invocados são capazes de dissolver os vínculos da amarração. Nesses casos, a melhor opção é que a vítima ofereça um sacrifício e faça preces aos deuses, ou para os deuses que têm o amarrado, ou, caso eles não sejam conhecidos, para todos. A amarração também pode ser desfeita se outro defigens ou a própria vítima encontram a kolossos e sistematicamente a desamarram – por exemplo, removendo faixas e pregos, colocando a cabeça e membros na posição certa, etc.

Referências
  1. Faraone, Christopher A., “Binding and Burying the Forces of Evil: The Defensive Use of ‘Voodoo Dolls’ in Ancient Greece,” Classical Antiquity, Vol. 10, No. 2 (Oct. 1991), pp. 165-205, with 7 figs. & 13 pls.
  2. Faraone, Christopher A., “The Agonistic Context of Early Greek Binding Spells,” in Christopher A. Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion, New York: Oxford University Press, 1991, pp. 3-32.
  3. Ogden, Daniel, Magic, Witchcraft, and Ghosts in the Greek and Roman Worlds: A Sourcebook, Oxford: Oxford University Press, 2002, esp. ch. 12.
  4. Strubbe, J. H. M., “‘Cursed Be He That Moves My Bones’,” in Christopher A. Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion, New York: Oxford University Press, 1991, pp. 33-59.
  5. Winkler, John J., “The Constraints of Eros,” in Christopher A. Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion, New York: Oxford University Press, 1991, pp. 214-43. 
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O texto fonte com as imagens originais podem ser consultado AQUI.

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