quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Religião e raça(s), ou que importa o tom de pele dos deuses?

Retorno a escrever no Ta-hiera com o objetivo de apresentar pensamentos um tanto quanto erráticos e telegráficos que vem me acompanhando já há alguns anos e que de forma explícita se evidenciaram a partir de algumas questões e considerações que me foram feitas durante o processo de seleção do Programa de Educação Básica para membros do RHB. Trata-se das relações entre religião, culto e questões étnico-raciais. A questão não é simples, aliás, se quer trata-se de uma única questão, mas de amplas e todas elas sem uma resposta definida ou definitiva: é um problema aberto, um trabalho em construção. Sendo assim, esse texto preocupa-se em esboçar algumas das minhas preocupações no sentido de articular esses dois marcadores na experiência da religião helênica politeísta em sua abordagem reconstrucionista.

No Brasil comumente raça e cor/tom de pele tornam-se sinônimos, todavia é preciso considerar a imensa carga ideológica que acompanha o primeiro termo, sem considerar, contudo que o segundo seja uma forma mais neutra. Fato é que o sistema racial brasileiro é multiplamente polarizado, em comparação, por exemplo, com o estadunidense. Se para um norte americano, diz-se de forma generalizada que existem negros, brancos e populações nativas indígenas, no Brasil há uma infinidade de morenos, negros, pretos, brancos, caucasianos, amarelos, pardos, mestiços, morenos jambos, mulatas, enfim. O espectro de cores e ideologias de raça amplia-se de maneira surpreendente. Não há aqui nenhum demérito de qualquer um desses sistemas, trata-se apenas de uma consideração preliminar a ser levada em conta na hora de estabelecermos nossos argumentos de modo que possamos entender que, desde uma perspectiva de como as pessoas se reconhecem e denominam, no Brasil a categoria “negro” não corresponde a uma única coisa, e o mesmo pode-se dizer das demais categorias, ainda que a noção de “branco”, como qualquer figura hegemônica, tenha uma forte tendência e não se dividir de forma tão evidente (mesmo assim observamos a paleta expandir-se quando necessário para inserir alguns grupos ou sujeitos aos quais há interesse em classificar como brancos).

O fato é que independente do sistema racial a que estejamos nos reportando, a raça é uma noção hierarquinzante e tende a ser um critério de identificação pré-concebido e separação entre os grupos. Essa separação não é uma simples divisão, mas de conjuntos, mas leva junto uma série de expectativas e convenções dos quais é muito difícil desvencilhar-se. A raça, aliás, não caminha sozinha. São inúmeras as pesquisas populacionais, documentais e demográficas de base estatística que apontam as relações entre a raça com situação social, exercício profissional e nível de acesso a serviços básicos como saúde e educação. Se esses dados por um lado são relevantes e devem ser pensados em conjunto, por outro eles acabam funcionando como regra generalizante que seguem juntos nesse pacote de expectativas e convenções sobre as raças a que me referi há pouco e que se expressa em cadeias lógicas pré-concebidas do tipo: homem+negro+jovem+desempregado= ladrão, ou mulher+negra+pobre = mãe de muitos filhos (de pais diferentes?). Dadas essas considerações prévias, explico agora minha relação com a questão étnico-racial no caso do contexto helênico. Minha noção sobre raça foi de maneira muito interessante provocada pela literatura, em especial por alguns fragmentos do romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto. Lembro quando o protagonista do romance, logo em suas primeiras páginas, afirma de maneira um tanto dionisíaca simplesmente que não tinha raça, que era verde, amarelo, azul e branco, enfim, brasileiro.  Sem ignorar o preço de “ser brasileiro” e o mito de democracia racial que pode haver por aí, a resposta do personagem me ofereceu ao menos uma alternativa que pudesse fugir desse determinismo biológico e dualista do ser branco x ser negro. Enfim, havia entendido que a obrigatoriedade de escolher entre um ou outro era uma tolice. 

Desde então essa preocupação entre raças persistiu em mim, primeiro como uma tentativa de burlar as relações existentes e já pré-formatadas sobre ser branco, negro e indígena (como se ser “índio” explicasse alguma coisa) e posteriormente na minha prática religiosa. Em certo momento no tempo acredito que deva ser comum a todo devoto de uma religião minoritária, como é o caso do Helenismo, perguntar-se se é realmente este caminho que deve seguir, o porquê de estar ali e não em outro lugar, e perguntas do gênero. Pois bem, essa minha crise se manifestou de forma bem similar em mim: por que eu, brasileiro, ser devoto de deuses tão distantes? Por que nos atraímos de forma tão fácil pelas culturas e sociedades europeias ao passo que desconhecemos/ignoramos/ não nos interessa saber dos povos próximos, ou mesmo num extremo exótico, dos povos e religião do Butão ou de Papua Nova Guiné? Tive poucas respostas e muitas perguntas colaterais, mas não interessa aqui tanto as respostas e sim o efeito delas. Fato é que sou helênico e disso não posso me desvencilhar: o modo de pensar, a acepção estética, os valores que norteiam o modo de vida, a devoção. Enfim, sou helênico por muitas razões e a prática devocional é uma dessas, não a predominante ainda que fosse através dos deuses que eu fui decodificando e reinterpretando esses sinais de helenismo em mim. Não sei bem como justificar essa premissa, mas foi a partir daí que decidi não mais pintar, em minhas estátuas votivas, a pele dos deuses, no sentido de não lhes atribuir qualquer vínculo de origem que pudesse ser lido por um observador externo como “deuses brancos”, “deuses negros”. Isso não me importava; para todos os efeitos eram deuses, os deuses da minha “fé”. 

Há pouco mais de uma semana após mais de dez anos da minha primeira leitura de Policarpo Quaresma e provocado por muitas experiências desde então, decidi pintar as estátuas. Com a ajuda de alguns amigos aprendi a desenhar na minha paleta de cores fórmulas que pudessem traduzir tons de peles dos deuses. E qual não foi minha surpresa quando ao tentar pintar o Heracles em um tom caucasiano bronzeado vê-lo transformado quase em uma cenoura musculosa. A forma não era de todo estranha, ainda havia ali uma informação interessante, mas o fato é que aquilo não representava em mim o que eu entendia d’Ele. Assim percebi, como uma suspeita, que é preciso em certos momentos devolver o direito de colorir a pele a todos, e que isso não deve implicar nas conotações de raça existentes, tampouco no que vem com isso.

A história, a partir de certa perspectiva, tende a homogenizar e congelar no tempo e no espaço os povos. Essa pode ser uma das razões pelas quais quando pensamos em gregos na Antiguidade os visualizemos quase sempre como brancos, austeros, vestindo túnicas - também brancas - e vivendo em cidades esplendorosas. Se essa é uma imagem possível, certamente não é a única e pode esconder o intenso fluxo de pessoas que circulavam pelo Mediterrâneo por finalidades diversasa: comércio, guerras, estudos, escravos, reis e governantes de outras terras que enviavam seus filhos para estudar ou que eram tomados como escravos, enfim. A Hélada do período arcaico e clássico era um território tão multicultural como o Brasil hoje, e apropriando-nos do registro cristão feito pelo apóstolo Paulo, é possível acreditar que em algum nível, o altar ao deus desconhecido da Acrópole - espaço destinado aos devotos de outras crenças que não a helênica – mostrasse que havia também para essas outras crenças um espaço de respeito.  Aliás, o que hoje traduzimos como uma religião pan-helênica não é uma evidência da antiguidade, mas um recurso da modernidade. As várias cidades, vilas e demos da antiguidade tinham seus próprios festivais, mitos, crenças enfim, que apesar de suas semelhanças e de haver de fato, alguns deuses adorados em parte quase total do território, eram entendidos como diferentes em algum momento. Essa especificidade não pode ser entendida como impossibilidade de comunicação, mas é preciso considerar esses dois espaços como movimentos de mútua afetação: a religião de Atenas tanto influenciou  o seu período áureo outras região, como cultos de regiões afastadas e distantes acabaram por influenciar também o culto público em Atenas (para mais ver por exemplo o trabalho de Martin Nilsson recentemente traduzido pelo Diretório de Tradutores do RHB).

A religião cristã, que hoje é maioria no Brasil não é uma religião nativa para os brasileiros – exceto que, como circula em tom jocoso pela internet – a cidade onde Jesus teria nascido, Belém, seja no Pará. Vale lembrar que o que chamamos hoje de cristianismo é o resultado da romanização do povo judeu  nos primeiros séculos da era comum com a fundação da Igreja de Paulo, de modo que o cristianismo não pode ser entendido como uma religião étnica ou nativa (em termos genealógicos) para a maioria dos povos (se não para todos) onde ela é maioria. Mas não é disso que se trata, o fato é que não devemos pensar de maneira estreita nas relações entre religião e raça, tampouco considerar esses espaços como particularidades de grupos isolados. Em outras palavras, a fé cristã se fundou em oposição  às religiões politeístas da antiguidade, principalmente na região de Roma e da Grécia, mas simultâneo a isso, os cristãos também apropriando-se de elementos (mitos, estrutura ritual, enfim) dos cultos "pagãos" de forma bastante semelhante ao modo como, entre a idade moderna e contemporânea, se constituiu as noções de diferença entre as raças. Nesse mesmo período, a partir de uma visão hegemônica, começou-se a observar a diferença entre brancos e não brancos, notoriamente os outros. Pessoas com tons de pele diferente não eram novidade desde o mediterrâneo. Na Grécia, por exemplo, a condição de escravo estava ligado mais a contextos econômicos (pessoas extramente pobres e prisioneiros de guerra) do que a cor da pele, ainda que houvessem diversos negros - influentes - na região, quiçá alguns deles compartilhando da religião e culto helênicos.

O fato é que não se deveria pensar na religião como uma relação de obrigatoriedade compulsória em razão de pretensos mitos de origem. Isso implica que não se pode (ou não deveríamos, creio eu) imputar de forma compulsória a alguém de pele negra que siga uma religião afrodescendente, da mesma forma que não se pode obrigar a alguém com cidadania grega que siga uma religião étnica compatível com sua região de nascimento/cidadania. 

Enfim, nada justifica uma medida que impõe compulsoriamente cadeias lógicas que cerceiam a liberdade das pessoas de entenderem a religião não apenas como uma orientação, mas também como uma escolha que melhor se enquadre na sua visão de mundo. Acredito que nosso esforço deva seguir no sentido de desmontar essas lógicas e, independente da posição política em que nos encontremos, contribuir para desenvolver condições de acesso equitativas para todos; além disso é preciso trabalhar também no sentido de desnaturalizar a noção de raça como categoria biologizante e os efeitos que isso gera sobre os grupos sociais. Não é fácil, mas o empenho de todos é fundamental no sentido de provocar transformações que sigam desde a base até os pontos mais elevados da estrutura social. A religião nada tem a ver com pretensos mitos de origem, e nesse sentido é bom recordar, ao menos no caso do RHB e da maior parte dos grupos reconstrucionistas, que ser heleno nada tem a ver com relações de parentesco sanguíneo, gênero, etnia, raça, enfim, é uma noção de pertencimento mais amplo, muito próxima da noção aristotélica de "heleno". 

Eirene Theoi.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto, me ajudou muito em algumas dúvidas que eu tenho.
    Sobre o fato de por ser negro obrigatoriamente deveria seguir uma religião afro-descendente, principalmente nesses dias de perseguição onde eu deveria estar "com meu povo" e defender nossos ideais. Sendo que o meu coração já tem donos e mesmo que eu fosse, minha mente ainda estaria no hellenismos.

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